Onde começa o corpo
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A clínica psicanalítica, funcionando como espelho da cultura, reflete atualmente a imagem de uma verdadeira fetichização do corpo, que se traduz pela preocupação excessiva não apenas com o seu funcionamento, mas, sobretudo, com a sua forma. É assim que, cada vez mais, ocupa lugar de destaque na cena contemporânea a obsessão pela magreza, a compulsão para fazer exercícios físicos, o horror ao envelhecimento, as excessivas e múltiplas intervenções cirúrgicas de modelagem do corpo, a busca psicopatológica da saúde ou, ao contrário, uma negligência destrutiva do corpo, que aparecem hoje, em nossa clínica cotidiana, ao lado de uma vasta gama de descompensações somáticas. É o corpo que toma a frente da cena, constituindo-se como fonte de insatisfação e de impedimento à potência fálico-narcísica. De veículo ou meio de satisfação pulsional, o corpo passa a ser também veículo ou meio de expressão da dor e do sofrimento. Um sofrimento que, às vezes, parece encontrar dificuldade para se manifestar em termos psíquicos (Fernandes, 2009 & 2011). De fato, atualmente o declínio da interioridade e o concomitante privilégio da exterioridade, conferindo à imagem um papel central, vêm sendo amplamente assinalados pelos psicanalistas. O que parece interessar agora, salienta Joel Birman (2001), “é a estetização da existência e a inflação do eu, que promovem uma ética oposta à do sofrimento” (pp. 248-249). A meu ver, essa cultura do evitamento da dor indica uma espécie de precariedade da atividade psíquica, na qual o espaço para uma reflexão sobre o sofrimento encontrava abrigo e possibilidade de elaboração. No lugar dessa reflexão, observa-se atualmente um imperativo constante de superação imediata de todo sofrimento, como se as marcas das * Psicanalista, doutora em Psicanálise e Psicopatologia pela Universidade de Paris vii, com pós-doutoramento pelo Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina (Unifesp). Professora do curso de Psicanálise e professora colaboradora do curso de Psicossomática do Instituto Sedes Sapientiae em São Paulo. É autora dos livros L’hypocondrie du rêve et le silence des organes: une clinique psychanalytique du somatique (1999), Corpo (2003) e Transtornos Alimentares: anorexia e bulimia (2006).
[1] P. Fédida. Par où commence le corps humain , 2000 .
[2] Maria Héléna,et al. L'hypocondrie du rêve et le silence des organes : une clinique psychanalytique du somatique , 1997 .
[3] J. Starobinski. Brève histoire de la conscience du corps , 1983 .