In 2003, the World Organization of National Colleges, Academies, and Academic Associations of General Practitioners/Family Physicians (WONCA) proposed a concept (that had previously received relatively little discussion) aiming to protect patients from unnecessary medical interventions and to prevent iatrogenicity: quaternary prevention. In times of intense social medicalization, particularly in Brazil due to the expansion of health care through the Family Health Strategy, iatrogenicity has become a highly relevant issue for both public health and the Unified National Health System (SUS). This article presents the concept of quaternary prevention and discusses and frames its relevance in light of three common situations in medical care with potentially iatrogenic results: excessive screening, complementary tests, and medicalization of risk factors. We propose the inclusion and discussion of this concept in the SUS, especially in primary care. Primary Health Care; Single Health System; Social Medicine Introdução O caráter medicalizador 1,2 e intervencionista da racionalidade 3 e da prática médico-científica começou, há algum tempo, a deixar entrever várias de suas limitações e mazelas, classificadas por Illich 1 em três tipos de iatrogenias: clínica, social e cultural. A iatrogenia clínica, relativa aos danos causados pela intervenção médica no indivíduo, a mais palpável e melhor percebida pelos saberes e métodos científicos, cresceu tanto, que ganhou dimensão coletiva e populacional, tornando-se recentemente a terceira maior causa de morte nos Estudos Unidos da América 4. Suscitou, assim, o reconhecimento acadêmico e social de seu potencial danoso em grande escala. Em paralelo, dentro da própria categoria médica, um conceito nascia intimamente relacionado à iatrogenia clínica e à medicalização social, cuja apresentação é objetivo deste artigo: a prevenção quaternária. O nascimento e a prática deste conceito vêm de uma reação à iatrogenia nascida dentro da própria categoria médica, vinculada à prática e à ética do cuidado. Seu lugar e significado ainda não estão bem estabelecidos, mas certamente ele merece atenção e debate na saúde pública e no Sistema Único de Saúde (SUS), dado seu potencial de contribuições à área. Em tempos de grande extensão da atenção primária à saúde no Brasil via Estratégia Saúde da Família, é grave o fato de quase não haver discussão na Saúde Coletiva e no SUS sobre a prevenção quaternária, ARTIGO ARTICLE 2012 Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 25(9):2012-2020, set, 2009 PREVENÇÃO QUATERNÁRIA NA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE 2013 dada a sua importância para o cuidado à saúde, intimamente ligado à missão ética e política de conter ou minimizar a parte da medicalização social decorrente da ação profissional em saúde. Sem pretender esgotar o tema da prevenção quaternária, porém contribuindo para suprir essa lacuna, apresentamos neste artigo o significado e a relevância do conceito, discutindo-o em três situações típicas e altamente comuns: excesso de rastreamentos e de solicitação de exames complementares e abusos na medicalização de fatores de risco O conceito foi proposto e vem sendo desenvolvido por um segmento da categoria médica. Isso é compreensível, já que esta se sobressai dentre as demais quanto ao seu poder de intervenção sobre os usuários e, assim, conseqüentemente, quanto ao poder de causar danos – foco da prevenção quaternária. Discutiremos a prevenção quaternária conforme vem sendo trabalhada pelos médicos, enfatizando desde já a propriedade e a extensão do conceito, com as devidas adaptações, aos outros profissionais de saúde, inclusive pela necessidade incontornável e saudável de trabalho interdisciplinar na Estratégia Saúde da Família, que, de forma inovadora na atenção primária brasileira, permite e facilita o descentramento do cuidado da intervenção médica (sabidamente medicalizante 5) por intermédio do trabalho em equipe. O conceito de prevenção quaternária Proposto por Jamoulle 6, Médico de Família e Comunidade belga, o conceito de prevenção quaternária almejou sintetizar de forma operacional e na linguagem médica vários critérios e propostas para o manejo do excesso de intervenção e medicalização, tanto diagnóstica quanto terapêutica. A proposta foi feita por Jamoulle 6 em 1999, tendo sido oficializada pela World Organization of National Colleges (WONCA), Academies and Academic Associations of General Practitioners/ Family Physicians em 2003. Prevenção quaternária foi definida de forma direta e simples como a detecção de indivíduos em risco de tratamento excessivo para protegê-los de novas intervenções médicas inapropriadas e sugerir-lhes alternativas eticamente aceitáveis 7. Posto que um dos fundamentos centrais da medicina é o primum non nocere, a prevenção quaternária deveria primar sobre qualquer outra opção preventiva ou curativa 8. A sua amplitude e as exigências éticas, filosóficas e técnicas da sua incorporação à prática médica desdobram-se em vários aspectos e exigem o domínio de uma série de técnicas médicoepidemiológicas, no geral pouco conhecidas e manejadas pelos próprios médicos, além do desenvolvimento extraordinário da “arte de curar”, calcada na relação médico-paciente, em sabedoria prática e em contextualização existencial, que o aperfeiçoamento da prática do cuidado permite desenvolver. Este foi o motivo provável pelo qual o conceito de prevenção quaternária foi desenvolvido operacionalmente pelos médicos especialistas contemporâneos que se propõem a cuidar das pessoas longitudinalmente – os Médicos de Família e Comunidade – ou seja, propõe-se resgatar e desenvolver a antiga medicina geral, ou clínica generalista, que permite ao mesmo profissional a experiência de cuidar de um conjunto de pessoas com diversos tipos de problemas de saúde, ao longo de grande tempo 9. A conceituação de prevenção quaternária foi proposta no contexto clássico dos três níveis de prevenção de Leavel & Clark 10, que classificava a prevenção em primária, secundária e terciária. Jamoule 7 propôs a prevenção quaternária como um quarto e último tipo de prevenção, não relacionada ao risco de doenças e sim ao risco de adoecimento iatrogênico, ao excessivo intervencionismo diagnóstico e terapêutico e a medicalização desnecessária. Similarmente, para Gérvas 9, é prevenção quaternária a ação que atenua ou evita as conseqüências do intervencionismo médico excessivo que implica atividades médicas desnecessárias. Dada a atual conjuntura, a prevenção quaternária deve ser destacada, pois permeia todos os outros níveis de prevenção, particularmente a prevenção secundária, mas também a chamada prevenção primordial (evitar a emergência e o estabelecimento de estilos de vida que contribuem para um risco acrescido de doença 11), e a promoção da saúde, nas última duas décadas revalorizada após a Carta de Otawa 12. Existem freqüentemente excessos de medidas preventivas e diagnósticas em assintomáticos e doentes, tanto em adultos como crianças. Nem todas as intervenções médicas beneficiam as pessoas da mesma forma, e, quando excessivas ou desnecessárias, podem prejudicá-las. Não se pode esquecer o potencial de dano das intervenções: cuidados tanto curativos quanto preventivos, se excessivos, comportam-se como um fator de risco para saúde. Além disso, quando se está promovendo as drogas como medida de prevenção (uma tendência recente notável) e o número de pacientes atingidos é muito grande, essa expansão da exposição às drogas pode causar importantes danos 13. A crescente atenção dirigida para as causas iatrogênicas da má saúde e a conseqüente adição da prevenção quaternária às atividades prevenCad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 25(9):2012-2020, set, 2009 Norman AH, Tesser CD 2014 Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 25(9):2012-2020, set, 2009 tivas apontam para a necessidade de explicitamente incluir a iatrogenia como uma influência sobre a saúde. Com o passar dos anos, o umbral terapêutico para a intervenção médica está diminuindo. Como a prevenção tem sido tradicionalmente focada sobre a doença e o conceito de doença vai se modificando ao longo do tempo, com os pontos de corte para designar o que é considerado doença invadindo cada vez mais o que antes era considerado normal e, além disso, os fatores de riscos estão sendo considerados como equivalentes a doenças, a diferença entre prevenção e cura está se tornando cada vez mais indistinta 13. A medicalização de estados pré-doença e de fatores de riscos se torna cada vez mais comum, incluídas as metas para hipertensão, colesterol, osteopenia e obesidade. A perspectiva de comercializar medicações já existentes para pessoas saudáveis expande enormemente o mercado dessas drogas, enquanto aumenta os custos para a sociedade e para os serviços em saúde, além de potencialmente reduzir a qualidade de vida ao converter pessoas saudáveis em pacientes 14. O resultado desse processo é que há menos tolerância para com as oscilações e variações do processo saúde-doença individual, fazendo com que os médicos intervenham mais precocemente. A margem de “normalidade” diminui, os diagnósticos se expandem e indicam mais intervenções. Logo, o intervalo de segurança, a margem entre os benefícios e os riscos também diminui. Cada vez mais se atende a mais pacientes com maior intensidade de recursos preventivos, diagnósticos e terapêuticos. Tudo isso aumenta a probabilidade de dano desnecessário por conta da atividade sanitária 8. Assim, a prevenção quaternária deve ser desenvolvida continuamente e em paralelo com a atividade clínica, de modo a evitar o uso desnecessário e o risco das intervenções médicas. Além disso, segundo Hespanhol et al. 15, em termos populacionais, ela proporciona uma resposta ao crescimento dos gastos com cuidados de saúde que consiste em proporcionar a racionalidade do tratamento, a utilização mais criteriosa dos recursos e a melhoria da qualidade da atividade profissional. Segundo Melo 16, vários são os exemplos de situações em que a balança ent
[1]
J. Gérvas.
Moderación en la actividad médica preventiva y curativa. Cuatro ejemplos de necesidad de prevención cuaternaria en España
,
2006
.
[2]
B Starfield,et al.
The concept of prevention: a good idea gone astray?
,
2008,
Journal of Epidemiology & Community Health.
[3]
A. Andermann,et al.
Revisiting Wilson and Jungner in the genomic age: a review of screening criteria over the past 40 years.
,
2008,
Bulletin of the World Health Organization.
[4]
Ja Wilson,et al.
Principles and practice of screening for disease
,
1968
.
[5]
Marc Jamoulle.
Contributor to the Wonca Dictionary of General/Family Practice
,
2003
.
[6]
B Starfield,et al.
Is US health really the best in the world?
,
2000,
JAMA.
[7]
Lúcio Meneses de Almeida.
Da prevenção primordial à prevenção quaternária
,
2005
.
[8]
Miguel Melo.
A prevenção quaternária contra os excessos da medicina
,
2007
.
[9]
C. Freitas,et al.
Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências
,
2009
.
[10]
T J Gates,et al.
Screening for cancer: evaluating the evidence.
,
2001,
American family physician.
[11]
A R Feinstein,et al.
The problem of cogent subgroups: a clinicostatistical tragedy.
,
1998,
Journal of clinical epidemiology.
[12]
Alberto Hespanhol,et al.
A medicina preventiva
,
2008
.
[13]
Charles A. Johnson,et al.
Patient-Centered Medicine: Transforming the Clinical Method
,
1995
.
[14]
J. Gérvas,et al.
Genética y prevención cuaternaria. El ejemplo de la hemocromatosis
,
2003
.
[15]
J. Gérvas,et al.
El efecto cascada: implicaciones clínicas, epidemiológicas y éticas
,
2002
.
[16]
J. Gérvas,et al.
Uso y abuso del poder médico para definir enfermedad y factor de riesgo, en relación con la prevención cuaternaria
,
2006
.
[17]
Charles Dalcanale Tesser.
Medicalização social (II): limites biomédicos e propostas para a clínica na atenção básica
,
2006
.
[18]
Abelardo E. Rahal.
Natural, Racional, Social. “Razón Médica y Racionalidad Científica Moderna"
,
2006
.
[19]
G. Smith,et al.
Reflections on the limitations to epidemiology.
,
2001,
Journal of clinical epidemiology.
[20]
Godfrey Fowler,et al.
THE STRATEGY OF PREVENTIVE MEDICINE
,
1992
.
[21]
J. Gérvas.
Innovación tecnológica en medicina: Una visión crítica
,
2006
.
[22]
W. Rosser,et al.
Approach to diagnosis by primary care clinicians and specialists: is there a difference?
,
1996,
The Journal of family practice.
[23]
Charles Dalcanale Tesser.
Medicalização social (I): o excessivo sucesso do epistemicídio moderno na saúde
,
2006
.
[24]
Tony Dixon,et al.
Evidence-Based Family Medicine
,
1999,
BMJ.
[25]
Barbara Starfield.
Atenção Primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia
,
2002
.
[26]
J A Muir Gray,et al.
New concepts in screening.
,
2004,
The British journal of general practice : the journal of the Royal College of General Practitioners.
[27]
Gordon H Guyatt,et al.
Waking up from the DREAM of preventing diabetes with drugs
,
2007,
BMJ : British Medical Journal.
[28]
David L Sackett,et al.
The arrogance of preventive medicine.
,
2002,
CMAJ : Canadian Medical Association journal = journal de l'Association medicale canadienne.
[29]
J. Gérvas,et al.
El fundamento científico de la función de filtro del médico general
,
2005
.